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William Beckford

 

 

Distingue-se o testemunho deste visitante de todos os restantes, tanto pela qualidade do seu tributo literário como pela fabulosa inspiração das suas realizações no campo da arquitetura e do vitral.

William Beckford (1760-1844) visita a Batalha, em unho de 1794, durante a sua segunda estadia em Portugal. Contrariamente a Murphy, Beckford herdara a maior fortuna de Inglaterra, aos 10 anos, por morte prematura do pai. Enquanto filho único, foi criado na mansão de campo de Fonthill, por uma mãe despótica e por tutores e professores particulares. Aprendeu precocemente a falar e escrever em várias línguas, a tocar piano, cantar e compor, a desenhar e pintar, além de, aos vinte e dois anos, ter escrito o primeiro conto oriental de uma longa tradição literária do Romantismo. Desde cedo, criou fortes laços com a natureza que o rodeava no domínio de Fonthill, prezando a vida em todas as suas formas e adquirindo um gosto especial pelo paisagismo.

Depois do seu Grand Tour, entre 1777 e 1779, Beckford apaixona-se pelo pequeno William Courtenay, que lhe permanecerá no pensamento de uma forma obsessiva até à fatídica visita que com a esposa faz à propriedade da família do jovem, então com 16 anos, Powderham Castle, em 1784. Aguardava-o a nobilitação como Barão de Fonthill e uma carreira política no Parlamento. Ambos lhe foram negados após os rumores acerca da sua ligação a Courtenay. Tendo sido esta efetiva, estima-se hoje, porém, que a denúncia de Lord Loughborough, tio de Courtenay, que aliás nunca levou o caso a tribunal, tenha sido movida por algo mais do que pudor, ou seja, ciúmes por causa de uma antiga paixão de sua mulher por Beckford e despeito pela posição oferecida ao filho de um político que, em tempos, ousara enfrentar o próprio rei. Independentemente destas circunstâncias, Beckford e sua mulher, Lady Margaret Hamilton, que se manteria corajosamente a seu lado, são ostracizados da sociedade inglesa, vendo-se obrigados a ir residir para a Suíça, onde nascem duas filhas. Porém, Lady Margaret viria a falecer de febre miliar, na sequência do segundo parto, deixando Beckford entregue à sua sorte de criatura errante nos dez anos que se seguiram. Foi durante este período que residiu, por duas vezes, em Portugal.

William Beckford tomou contacto com Portugal, pela primeira em 1788. Do agrado desse primeiro encontro resultou a estadia de cerca de um ano. À medida que melhor conhecia o País – que o recebeu tão calorosamente quanto pôde (a hostilidade do Embaixador da coroa britânica em Lisboa impediu uma mais franca abertura por parte da corte portuguesa, nessa altura) – começava a sentir fazer parte dele. Vinte e dois anos depois ainda escrevia: “as memórias de Portugal são as que mais próximas estão do meu coração”. Regressaria em 1793 para partir apenas em 1795. Em junho de 1794, visitava os mosteiros de Alcobaça e Batalha. Da Batalha conhecia já seguramente o que circulava em Inglaterra e, sem dúvida, os fascículos publicados por James Murphy, de que foi assinante. Curiosamente, não existe uma única nota relacionada com a passagem pelo Mosteiro da Batalha no diário que lhe inspiraria, quarenta anos mais tarde, a escrita de Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, uma das obras que acabaria por o colocar entre os escritores de maior mérito literário do seu tempo. Neste pequeno livro, relata a chegada à Batalha, na noite de 8 de junho, a receção pela comunidade conventual e a estadia, que se concluiu ao final da manhã do dia seguinte. Foi contra vontade que, segundo relata, Beckford regressou a Alcobaça com sua a comitiva, numa aparatosa caravana. Por esse motivo volta à Batalha, no dia 10 de junho, atravessando a solidão dos campos de Aljubarrota no seu cavalo árabe.

Para quem não dispõe de notas, o relato parecerá, à primeira vista, pouco fiável, ou até mesmo essencialmente fantasioso. Eis a dificuldade que se levanta, a cada passo, à justa valoração da complexa personalidade de Beckford. Outros testemunhos nos revelam quanto o Mosteiro da Batalha o impressionou – e não apenas o edifício. É mais do provável que tenha tido que se servir de alguns auxiliares de memória, com certeza os desenhos de Murphy (que apodou de “enfadonho arquiteto”) e o seu diário de viagem, publicado em 1795, além da própria tradução que este autor apresenta de Frei Luís de Sousa. Porém, à descrição que faz da progressão da visita no espaço não seria suficiente qualquer um destes testemunhos. O depoimento – que, na verdade, pela sua qualidade poética, é muito mais do que isso – da primeira ida de Beckford à Batalha revela a memória da vivência do espaço arquitetónico, aliás em perfeito acordo com o uso diário que dele então fazia a comunidade residente. O texto beckfordiano assume-se, de resto, até hoje, como testemunho único dessa vivência extraordinária, que, como veremos, o seu autor procurou reacender em Fonthill, ajudando ainda à compreensão do funcionamento da mole conventual, tal como ela foi reequacionada em meados do século XVI, ulteriormente obliterada com as demolições do restauro oitocentista. A segunda ida de Beckford à Batalha afigura-se, pelo contrário, totalmente ficcionada devido ao aproveitamento fantasista de informações fornecidas por Murphy e Frei Luís de Sousa. Parece tratar-se do passeio que, aos 75 anos, esse ainda então intrépido cavaleiro decidiu oferecer-se a si próprio, mesmo depois da derrocada, treze anos antes, da quimera gótica de Fonthill. Neste sentido, a narração da segunda incursão é tão verdadeira quanto a primeira, na medida em que dela é um prolongamento.

É possível que James Wyatt, assinante da obra de Murphy, tal como Beckford, lhe tenha sugerido que visitasse a Batalha, durante a sua segunda estadia em Portugal. Natural é também que tenha visto alguns desenhos do Mosteiro realizados por esse seu outro cliente e patrono de Murphy, William Conyngham, pois, antes da saída do primeiro fascículo de Murphy, já se tinha inspirado no antigo coruchéu da Capela do Fundador para a construção da torre central, em forma de octógono, de Lee Priory, sem nunca ter visitado a Batalha. Este tema vai reaparecer na encomenda que Beckford faz a Wyatt, arquiteto do rei Jorge III de Inglaterra, em 1796, após o exílio de mais de uma década que, apesar de tudo, não tinha apagado a má fama que lhe trouxera o escândalo de Powderham. No domínio de Fonthill, onde o pai construira uma vasta mansão neoclássica, começará a nascer uma construção neogótica que não vai parar de crescer até 1812, absorvendo não apenas a anterior mansão, que acabou por ser totalmente demolida, como toda a atenção e fortuna de Beckford. Uma primeira versão da torre central, assente num octógono com os seus arcobotantes, é conhecida hoje apenas através de uma aguarela, pois desmoronou-se com uma tempestade em 1800, verificando-se que, nela persistia o modelo da Capela do Fundador. O modelo reaparece, aliás, noutra obra de Wyatt, na década de 1790 – Cassiobury. Na torre reconstruída haviam de ser instalados quatro vitrais que copiavam obras da Batalha, as “Batalha windows”. Na ampliação de Fonthill ficaria também plasmada, sob variadas formas, a genealogia e a heráldica da Casa de Lancaster, de que Beckford cada vez mais estava persuadido de descender.

Pela grandiosidade cénica, não apenas exterior mas igualmente interior, de Fonthill Abbey, acessível apenas àqueles – poucos – que, desta vez, cabia a Beckford escolher, foi-se forjando o mito de um homem extravagante, cujo gosto ia contagiando e ditando o destino das artes em Inglaterra. Os aproximadamente vinte anos que Beckford viveu em Fonthill Abbey continuaram a ser, no entanto, de isolamento social; convivia apenas com os seus servidores, os artistas e até alguns religiosos refugiados da França revolucionária que aí se recolheram. Altos muros, mandados construir em torno da propriedade, com o intuito de impedir a passagem de caçadores perseguindo toda a espécie de animais, mais contribuíam para o mistério, o isolamento e a maledicência.

No início da década de vinte do séc. XIX, Beckford começa a ver-se em sérias dificuldades para manter Fonthill Abbey, quer devido à queda dos lucros provenientes das suas plantações de açúcar na Jamaica, quer por razão da dimensão que o próprio projeto adquirira, acabando por colocar a abadia e todo o seu extraordinário recheio à venda. O leilão que deveria ter lugar em 1822 não chegou a realizar-se devido à inesperada compra de todos os bens, nas vésperas, por um novo milionário.

Beckford mudara-se, entretanto, para Bath, onde viveu as últimas duas e mais tranquilas décadas da sua vida, tendo regressado à arquitetura neoclássica, continuado a colecionar livros raros, obras de pintura e artes decorativas, a dar os seus passeios diários a cavalo e a modificar os jardins privilegiando o seu sentido mais natural como fizera já em Fonthill e em Monserrate, Sintra, durante a terceira estadia em Portugal (1798-99). Construiu também uma nova torre, Lansdown Tower, onde a sua memória pode ainda hoje ser revisitada e escreveu as recordações da viagem a Alcobaça e à Batalha.

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